ilustrar o texto "Aprendendo com o sofrimento" com a arte japonesa kintsugi, que recobre com recobre com material dourado as rachaduras de um objeto quebrado.
Kintsugi – expressão artística japonesa de reparar com ouro

Manuel Bandeira foi uma importante figura do movimento modernista brasileiro, conhecido por extrair reflexões profundas de eventos cotidiano. No poema Gesso ele consegue de maneira bem característica relacionar a quebra de uma estátua comum de gesso à um processo interno de dor e reparação, no qual o eu lírico se vê aprendendo com o sofrimento.

Gesso

Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova
— O gesso muito branco, as linhas muito puras —
Mal sugeria imagem de vida
(embora a figura chorasse).
Há muitos anos tenho-a comigo.
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de pátina
[ amarelo-suja.
Os meus olhos de tanto a olharem,
Impregnaram-na da minha humanidade irônica de tísico.
Um dia mão estúpida
Inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoelhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos,
[ recompus a figurinha que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo
[ mordente de pátina…

Hoje esse gessozinho comercial
É tocante e vive, e me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu
.

Manuel Bandeira.

O lugar do sofrimento

Parte da inspiração do poema se apresenta na biografia do próprio autor, que jovem, foi diagnosticado com tuberculose, uma infecção que na época não tinha cura e levava a morte muitas pessoas. Esse diagnóstico foi vivenciado de maneira muito intensa por Manuel que se viu “desacreditado” frente a sua vida. Essa relação do poema com esse fato de sua vida é sugerida no verso “Os meus olhos de tanto a olharem, / Impregnaram-na da minha humanidade irônica de tísico.“, sendo “tísico”, um termo hoje em desuso, mas que na época nomeava a pessoa que vivia com tuberculose. No trecho ele metaforiza o processo de identificação que se constrói no texto entre ele e a representação de gesso.

Com isso em mente, poemos notar que no início do texto a estátua é descrita como uma estátua de “gesso muito branco” ,”linhas muito puras” que “Mal sugeria imagem de vida
(embora a figura chorasse)”.
Essa descrição de uma estátua típica, pode também ser pensada como a metaforização de uma certa infância, permeada por uma pureza ingênua, maspouco relacionada com a realidade do mundo. Não a toa, conforme o tempo passa e essa estátua “vive”, ela passa a ser vista como “velha“, “carcomida” e “manchada“, num processo de maturação quase orgânico.

Mas apesar de estar mais “vivida” é somente no fátidico dia de sua quebra que a existência dessa escultura se modifica de fato. O poeta descreve um evento motivado por estupidez que resultou na fragmentação da estátua. Ele então a recopõe e nota que é justamente nas linhas dessa fragmentação que se formam padrões escurecidos, quase como cicatrizes no gesso, e é nesse momento que bandeira diz “Hoje esse gessozinho comercial / É tocante e vive, e me fez agora refletir / Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.” Nesse trecho final o poeta considera que é justamente o sofrimento vivenciado que circunscreve a identidade daquele objeto.

O poema de Bandeira traduz muitos aspectos da experiência da vida humana, quantas vezes não somos interpelados por dores e decepções que são sentidas como cortes profundos que parecem irreparáveis? O autor, no entanto, propõe um novo olhar sobre isso, quem seríamos sem essas marcas e o que podemos construir com elas?

Leia mais.

P.s: Apesar de experienciar a tuberculose na juventude, Manuel Bandeira se recuperou e viveu até os 82 anos, publicando muitos livros e ocupando a Academia Brasileira de Letras. Hoje a infecção por tuberculose é curável com antibióticos eficazes, em caso de tosse seca por mais de três semanas, procure uma UBS para realizar o teste.


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