A viagem
Que coisas devo levar
nesta viagem em que partes?
As cartas de navegação só servem
a quem fica.
Com que mapas desvendar
um continente
que falta?
Estrangeira do teu corpo
tão comum
quantas línguas aprender
para calar-me?
Também quem fica
procura
um oriente.
Também
a quem fica
cabe uma paisagem nova
e a travessia insone do desconhecido
e a alegria difícil da descoberta.
O que levas do que fica,
o que, do que levas, retiro?
MARQUES, A. M. In: SANT’ANNA, A (Org.).
Rua Aribau. Porto Alegre: Tag, 2018
O poema A Viagem de Ana Martins Marques, ganhou visibilidade nacional ao figurar na prova de Linguagens e Suas Tecnologias do Enem 2019. O poema reflete acerca da experiência de separação e expressa de modo muito delicado a dor da ausência. Neste espaço gostaria de análisá-lo como uma expressão possível do processo de luto.
No início do texto o eu lírico se dirige à alguém, um outro que parte:
“Que coisas devo levar / nesta viagem em que partes?“,
e com isso já apresenta o tom do poema, a profunda incerteza que a perda de algo ou alguém gera:
“As cartas de navegação só servem
a quem fica.
Com que mapas desvendar
um continente que falta?”,
essa experiência parece levantar uma sensação de desamparo; como lidar com a perda? Afinal essa vivência não somente abarca a ausência material do que foi perdido, mas também a ausência daquilo que este representava em nossas vidas. E nesse sentido, o eu lírico do poema parece perdido na busca por reparar este espaço vazio, sem saber como superar essa dor
“Estrangeira do teu corpo/ tão comum / quantas línguas aprender / para calar-me?”.
Essa sensação é retificada em um trecho tão bonito quanto singular “Também quem fica/ procura / um oriente.”, ou seja quem vivencia uma perda de fato busca um norte, um sentido, e essa busca pelo sentido da perda é uma empreitada dolorosa e difícil, pois almejamos atribuir uma explicação lógica à fatalidades que estão fora de nosso alcance. No final do poema, no entanto, parece emergir uma sugestão de esperança:
Também
a quem fica cabe uma paisagem nova
e a travessia insone do desconhecido
e a alegria difícil da descoberta.
O que levas do que fica,
o que, do que levas, retiro?
uma esperança, porque de fato quem fica vê-se diante de uma outra paisagem, de uma outra realidade na qual o outro não faz parte, uma paisagem empobrecida. Mas que ainda pode abrir espaço para o novo, ao passo em que algo de nós é levado com a experiência da perda, mas também, algo do outro ainda vive em nós.
Infelizmente ainda não existe uma receita pronta sobre como enfrentar o luto, essa experiência é tão importante que todas as sociedade estudadas pelos antropólogos possuem rituais próprios, formas de digerir a perda e reornagizar a própria perspectiva. Mas algo que parece necessário e comum é a necessidade de abrir espaço para o sofrimento, para poder sentir aquilo que essa ausência representa, sentir, pois é algo que vai além do pensar, além da análise lógica, algo que se manifesta concretamente.
Neste momento também é importante abrir-se para ajuda, reconhecer em que ponto a dor se torna insuportável, pois o sofrimento em si não é patológico, é algo esperado e necessário para o desenvolvimento emocional. Mas muitas vezes ele se torna excessivo e é importante que isso seja percebido para que se possa buscar ajuda, seja de um amigo/familiar, seja de um profissional terapeuta.
Se você está passando por um processo de sofrimento e sente que não consegue dar conta sozinho, agende uma consulta psicológica.
2 comentários
Cassiane Araújo · janeiro 16, 2021 às 6:21 pm
Muito boa análise. Ter espaço para vivenciar o luta é de fato algo importante para seguir bem. O “problema” é que o ser como sociedade coletiva não compreende bem as formas distintas da dor.
Cassiane Araújo · janeiro 16, 2021 às 6:21 pm
*o luto